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STF começa a julgar direito à indenização a filhos separados de pessoas atingidas pela hanseníase

Toffoli vota favorável à exclusão da prescrição de cinco anos e Moraes acompanha o relator

Por: Redação
11/02/2025 às 10h30

Começou, nesta sexta-feira (07), no Supremo Tribunal Federal (STF), o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), que requer o reconhecimento da imprescritibilidade dos pedidos de indenização propostas contra a União pelos filhos separados de pessoas atingidas pela hanseníase, cujo fundamento seja o afastamento forçado de seus pais promovido pelo Estado. O julgamento vai até o dia 14 de fevereiro.

O ministro Dias Toffoli votou pela exclusão da incidência do prazo prescricional de cinco anos. O voto favorável vem em resposta à ação ajuizada pela Defensoria Pública da União (DPU) e o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan). O ministro Alexandre de Moraes acompanhou o voto do relator. Por sua vez, o ministro Flávio Dino divergiu, para estabelecer a incidência do prazo prescricional a partir da publicação da ata de julgamento.

“... Julgo procedente o pedido veiculado, declarando a inconstitucionalidade parcial, sem redução de texto, do art. 1º do Decreto nº 20.910, de 6 de janeiro de 1932, para, tão somente, sem afastar a necessária demonstração, em cada caso, dos pressupostos da responsabilização civil do Estado, excluir do âmbito de incidência do prazo prescricional de 5 (cinco) anos as pretensões de indenização propostas contra a União pelos filhos separados de pessoas atingidas pela hanseníase cujo fundamento seja o afastamento forçado de seus pais promovido pelo Estado, reconhecendo, por conseguinte, a imprescritibilidade das pretensões em tais casos”, redigiu o relator.

“O voto do ministro Dias Toffoli, acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes, representa um verdadeiro resgate da cidadania dos filhos separados de pais atingidos pela hanseníase. Permite o reencontro do Brasil com a própria história, por viabilizar a reparação dos danos perpetrados pelo Estado contra os filhos separados. Ficará registrado na história do Supremo Tribunal Federal pelo apuro técnico e sensibilidade”, declarou o defensor público federal Gustavo Zortéa, que assina a ADPF junto com o também defensor Bruno Arruda e o então defensor público-geral federal em exercício, Fernando Mauro Junior.

Prescrição de cinco anos: exigência inconcebível

Em seu voto, após constatar “a plena legitimidade ativa” do Morhan “para deflagrar o controle de constitucionalidade abstrato nesta Suprema Corte, nos termos do art. 103, inciso IX, da Constituição Federal”, Dias Toffoli destacou que “é faticamente inconcebível a exigência de que as pretensões de indenização pudessem ser exercidas em juízo, no prazo de 5 (cinco) anos, por aqueles que, à época, eram crianças e adolescentes. Isso, tanto pelo fato de que, durante esse período, essas pessoas ainda estavam sujeitas às mais diversas violações, como pelo fato de que os próprios pais dessas crianças e adolescentes, que eventualmente ajuizariam as ações conforme disciplina legal da época, também estavam submetidos ao tratamento compulsório de combate à hanseníase – ou seja, também eram vítimas da política estatal” e que “as normas constitucionais violadas pela postura deliberada do Estado Brasileiro são aptas a afastar a incidência da prescrição nessa hipótese”.

Abusos e maus tratos

O ministro ressaltou que, “além da violência per se decorrente da separação forçada de famílias, fosse nas instituições de internação, fosse com terceiros, os recém-nascidos, as crianças e os adolescentes separados forçadamente dos pais em razão da política pública de combate à hanseníase sofreram sistematicamente maus tratos, abusos e preconceito, que ocasionaram danos de difícil reparação”.

De acordo com  Toffoli, “não é demasiado concluir que a realidade dos preventórios, marcada por abusos de diversas nuances e vicissitudes, chegando até mesmo à instituição de trabalho infantil e à prática sistemática de condutas tipificadas penalmente, representava um estado de coisas em desconformidade com a Constituição Federal ora vigente, tendo em vista a perpetração de violações de direitos individuais, como à vedação à tortura ou à tratamento desumano ou degradante (art. 5º, inciso III) e, de uma perspectiva ampla, à própria dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III)”.

O magistrado destacou ainda que “merece registro o fato de que o ambiente dos preventórios teve efetivo potencial de tolher o direito à autodeterminação e à identidade das crianças e adolescentes separados forçadamente, porquanto eles foram submetidos, muitas vezes, a ambiente homogeneizante, repressor das individualidades e das particularidades de cada indivíduo. As violações sistemáticas perpetradas ao longo da vigência dessa política pública afiguram-se tão múltiplas e diversas que dificultam até mesmo a densificação de tal realidade em descumprimento de dispositivos normativos específicos, fato que é potencializado pela subsistência de danos que perpassaram a duração da política pública em si, estendendo-se ao longo da vida das vítimas, sendo de difícil reparação”.

Segundo Toffoli, “o estado de coisas referente à política pública adotada pelo Governo Brasileiro no combate à hanseníase não teria sido recepcionado pela nova ordem constitucional inaugurada em 1988”.

Reconhecimento da imprescritibilidade

Dias Toffoli avaliou que “a absoluta impossibilidade do cumprimento em juízo do prazo prescricional quinquenal para a postulação indenizatória por aqueles que , à época dos fatos, eram crianças e adolescentes, somada à estatura constitucional dos valores efetivamente violados pelo próprio Estado Brasileiro, impõe o reconhecimento da imprescritibilidade das pretensões de indenização propostas contra a União pelos filhos separados de pessoas atingidas pela hanseníase cujo fundamento seja o afastamento forçado de seus pais promovido pelo Estado. Até mesmo em razão da idade já avançada de grande parcela dos filhos separados das pessoas atingidas pela hanseníase, o reconhecimento da presente imprescritibilidade é medida de efetiva justiça material e de concretização dos ditames inaugurados pela ordem constitucional em 1988”, concluiu o ministro.

Entenda o caso

Em 25 de abril de 2023, a Defensoria Pública da União (DPU) e o Movimento de Reintegração das Pessoas Atingidas pela Hanseníase (Morhan) protocolaram pedido ao STF para que a indenização aos filhos que foram separados de pais atingidos pela hanseníase fosse considerada imprescritível. As instituições apontaram a necessidade de que esses casos fossem excluídos do prazo prescricional de cinco anos, tempo previsto, no artigo 1º do Decreto n. 20.910/1932, para ações contra a União, Estados e municípios. DPU e Morhan solicitaram que fosse expedida medida liminar por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) protocolada na Corte. No dia seguinte, foi cadastrada a ADPF 1060.

No Brasil, a política pública para a hanseníase vigorou entre os anos de 1923 e 1986 e envolvia a internação e o isolamento compulsório de pessoas atingidas pela doença. A lei passou a determinar o afastamento compulsório e imediato de todos os filhos, inclusive recém-nascidos.

O próprio Governo brasileiro reconheceu a responsabilidade do Estado pelas violações de direitos por meio da Lei 14.736/2023, que estende aos filhos separados a pensão mensal especial que antes era devida apenas às pessoas submetidas à política de Estado para tratar a hanseníase.

Consequências de uma infância de abandono

Ao serem separados dos pais atingidos por hanseníase, os filhos foram deixados sozinhos, com terceiros ou foram internados em instituições, onde viveram uma infância marcada pelo abandono. Nessas instituições, eles eram criados de forma coletiva e sem cuidados específicos que garantissem uma infância junto ao seu grupo familiar.

Essas práticas foram responsáveis por danos de difícil reparação:

 

Desaparecimentos forçados (pais que, ainda hoje, não sabem o paradeiro dos filhos, e filhos que não sabem o paradeiro dos pais);

Tortura de todo tipo e com consequências diversas, como lesões permanentes (há depoimentos de pessoas que, quando crianças, tiveram os tímpanos estourados pelos castigos sofridos nos educandários após a separação dos seus pais);

Traumas decorrentes de abusos sexuais;

Maus tratos (pessoas que carregam cicatrizes pelo corpo, crânio com lesões, traumas psicológicos);

Preconceito e estigma que ainda hoje permanecem arraigados no Brasil.

O relatório preliminar de Grupo de Trabalho Interno, que tinha o objetivo de justificar e subsidiar a criação de Grupo de Trabalho Interministerial no âmbito do Governo Federal para tratar dessas indenizações, estima que 30.320 filhos de pessoas atingidas pela hanseníase podem ter sido internados em preventórios de 1927 a 1986. Esse número não leva em consideração as crianças não cadastradas em preventórios, que tenham sido adotadas ou encaminhadas diretamente aos familiares.

“Esse isolamento compulsório tinha natureza policial e desconsiderava completamente as relações sociais dos doentes e de seus filhos; causava a ruptura súbita dos laços familiares e afetivos, com deletério impacto na vida das famílias, notadamente nos filhos desligados indefinidamente de seus pais”, diz trecho da ADPF.

“Infância Roubada”

Assista a depoimentos relacionados ao caso no vídeo “Infância Roubada – Memórias de filhos separados dos pais atingidos pela hanseníase”, produzido pela DPU com o apoio do Morhan no final de 2019.

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