Interpretada pela Companhia “Ornitorrincos Esquisitos”, a peça “Escute Meu Reflexo” traz uma contundente mensagem a adultos e adolescentes sobre o conturbado período de transição entre a infância e a vida adulta; montagem marca a estreia ao público da trupe são-pedrense de adolescentes
O córtex pré-frontal é a região do cérebro responsável pela regulação emocional e só atinge sua completa maturidade por volta dos 25 anos de idade. Dessa forma inusitada se inicia o espetáculo “Escute Meu Reflexo”, que marca a estreia ao público da Companhia de Teatro “Ornitorrincos Esquisitos”, do município de São Pedro. Realizada no último sábado, 23, no Espaço Artístico “Clarice Zezza Matarazzo”, a peça fez parte da programação da 70ª Semana Cultural Gustavo Teixeira, promovida pela Prefeitura de São Pedro por meio da Coordenadoria de Cultura.
O roteiro tem nos dramas e idiossincrasias da puberdade o seu fio condutor. Contado, exposto e escrito a 32 mãos, pelos 16 adolescentes da trupe, que trouxeram suas opiniões, vivências e sugestões para dentro do texto.
Com uma narrativa dramática - e alguns lampejos de humor - e repleta de simbolismos, a peça alterna diálogos e encenações típicas desse conturbado período de transição entre a infância e a vida adulta. A diferença - e aí reside o grande mérito do espetáculo - é que somente a trupe de adolescentes, de 12 a 15 anos, possui “lugar de fala” no palco para expressar todas as dores e delícias das transformações físicas, emocionais, cognitivas e sociais às quais são cotidianamente submetidos.
Aparentemente descabida, a explanação logo no primeiro ato sobre o funcionamento do córtex cerebral apela à ciência – e aos pais – para que se amplie a compreensão sobre o desenvolvimento dos filhos, acalmando as expectativas para que se lide da melhor forma com as situações desafiadoras da adolescência.
“A peça, já em seu título (Escute o Meu Reflexo), traz um grito de alerta, um convite para os adultos desobstruírem a escuta e se olharem no espelho, lembrando que um dia também foram adolescentes”, resume a atriz e diretora de teatro, Mônica Cardoso, professora dos Ornitorrincos Esquisitos.
Responsável pelo roteiro final, a atriz foi a única “não adolescente” a pisar no palco. E, mesmo assim, de maneira propositadamente discreta. No canto do cenário, sob um tênue fio de luz, a adulta empunha uma jarra repleta de água, entornando simbolicamente o líquido no copo. Entre uma e outra cena de angústia e desassossego, ela faz o copo com água transbordar, culminando no ato final.
“O copo é como a gente se sente tantas vezes”, explica a atriz Paolla Toniollo, de 15 anos, que integra a Companhia “Ornitorrincos Esquisitos” desde seu início, em abril de 2022. “O espelho é como a gente se vê e como os outros
veem a gente”, acrescenta ela, referindo-se às diversas ocasiões nas quais esse objeto também é simbólico e cenograficamente utilizado.
“Toda essa ‘bagunça arrumada’ e essas metáforas chocam, fazem as pessoas voltarem para casa refletindo sobre o assunto”, complementa Catarina Figueiredo, também de 15 anos.
No entanto, “Escute Meu Reflexo” não se limita a uma interlocução entre gerações e traz em seu roteiro, com a legitimidade de quem possui lugar de fala, uma mensagem de catarse, de adolescentes para adolescentes. Tudo ao som de uma trilha especialmente escolhida: “Quase Sem Querer” (Legião Urbana); “Máscara” (Pitty); “Metamorfose Ambulante” (Raul Seixas), com melodias e letras que expressam as angústias, dúvidas, inseguranças, os problemas de autoestima e a rebeldia típica da adolescência. Em “Jealousy, jealousy” (Inveja, Inveja), da cantora e compositora norte-americana Olívia Rodrigo, uma narrativa visceral, em primeira pessoa, de um adolescente envolto em um turbilhão de sentimentos.
O espetáculo também reservou alguns momentos de interação e descontração, com gargalhadas perdidas na plateia diante de expressões típicas de adultos que, de tão utilizadas em sermões e advertências, se tornaram motivo de chacota: “filha minha não faz isso”; “engole esse choro”; “você não é todo mundo”; “em casa a gente conversa”; “não fez mais que a obrigação”; “se eu achar, vou esfregar na sua cara”; “quero ver quando eu não estiver mais aqui”; “na minha época não era assim”.
Com texto, direção e cenografia de Mônica Cardoso, “Escute Meu Reflexo” contou com sonoplastia e iluminação de Lucas Barbosa.